Nas palavras ditas por Jesus e escritas por alguns de seus discípulos e seguidores, em seu conjunto (O Evangelho) pode ser encontrado um resumo do sentido da vida. Selecionei algumas, cujo sentido mais profundo poderá nos levar à compreensão de nós mesmos e do destino humano. O tempo pode ter alterado o sentido originalmente atribuído pelo autor, mas a percepção atual, pelo coração, não dogmática, poderá nos trazer alguma luz transcendente.
Escolho as palavras de Jesus pela minha condição de cristão, mas creio que o mesmo sentido pode ser encontrado no seio de toda e qualquer religião. Aquele sentido não é patrimônio de ninguém, tampouco de uma única religião ou filosofia.
Jesus, como outros, encarnou o arquétipo do Si-Mesmo. Serviu, através de seus feitos e conceitos emitidos, como elemento de projeção deste arquétipo. Em cada um de nós existe uma Imago Dei, isto é, uma representação de Deus, esculpida por Ele mesmo em nossa psique,nas camadas mais profundas da alma humana, desde a nossa origem divina. Jesus conseguiu se aproximar daquela Imago Dei, contribuindo para uma percepção mais precisa de Deus em nós. Jesus era o peixe; a cruz, o anzol, simbolizando algo que era içado do inconsciente humano para o despertar de cada um.
A análise que presentemente faço tem uma base psicológica pessoal, muito embora me aproprie dos conceitos junguianos, o que não pretende anular outras interpretações cabíveis aos textos evangélicos. Por detrás das palavras proferidas existiram ideias e sentimentos, imagens e experiências. Difícil é trazer para a atualidade o que de fato significaram. Razão pela qual não tenho a pretensão de fazê-lo. Prefiro, por este motivo, apresentar algo que possa ser compreendido de forma contextualizada e busque o significado da vida.
No capítulo 6, versículos 19 a 21, do evangelho de Mateus, consta o seguinte:
Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam; mas ajuntai para vós outros tesouros no céu, onde traça nem ferrugem corrói, e onde ladrões não escavam nem roubam; porque onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração.
Está claro que a colocação acima pretende levar as pessoas à continuidade de uma conduta assertiva na vida, visando à realização de algo diferente de que fizer antes. Ser assertivo é ser afirmativo e determinado na vida. A conduta proposta não contempla uma vida medíocre ou recolhida, mas cheia de realizações e preenchida de experiências significativas. Tais experiências devem levar ao ajuntamento de tesouros, cujo conteúdo não possam ser destruídos. Não há qualquer recomendação à vida contemplativa ou acomodada, mas dinâmica e operosa. Ao surgir ajuntar tesouros que não possam ser corroídos ou roubados, talvez quisesse assinalar algo que não sofresse o desgaste do tempo, portanto algo que estivesse adequadamente abrigado. Talvez o mundo interno seja colocado como o terreno no qual o tesouro deva ser acumulado, pois lá dentro, na profundidade da alma, não seja possível a corrosão nem o roubo. A menção do coração como estando junto ao tesouro caracteriza sua essência.
O tesouro está ligado às coisas do coração, isto é, ao mundo emocional de cada pessoa. Talvez a mensagem embutida da respeito à influência das emoções e sentimentos na felicidade da pessoa. A aquisição verdadeira é aquela que se dá com o coração, pois todas as experiências da vida estão conectadas pelos fios invisíveis do amor. Nesse aspecto, o sentido da vida e da consciência superior. Ele representa o que existe de mais transcendente na alma humana. Cuidar dele e entender que as coisas devem guardar estreita relação com seu simbolismo significa aproveitar melhor as experiência da vida.
Jesus é útil como figura de projeção nas fases iniciais do processo de desenvolvimento da personalidade e da percepção do Si-Mesmo para o cristão. Cristalizar uma atitude devocional, sempre submissa, não percebendo em si as qualidades nele projetadas, internalizando-as a partir das experiências da vida, é paralisar o processo evolutivo da própria pessoa. Em algum momento de sua vida, o cristão, ou qualquer devoto de uma religião, deverá encontrar em si as qualidades atribuídas ou inconscientemente projetadas em seu líder espiritual ou no deus em que acredita. Assim, as figuras que antes serviram de projeção do Si-Mesmo ou do sagrado, suscitarão novas possibilidades simbólicas, não mais eliciarão o que antes evocavam na pessoa.
Podemos entender que o significado da vida e o destino humano estão visceralmente conectados ao aproveitamento emocional das experiências vividas.
Em Mateus 6.33 consta uma atitude inicial a se tomada na vida, a seguinte recomendação:
“Buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas cousas vos serão acrescentadas.”
O reino e a sua justiça são símbolos que merecem interpretação. O reino é o lugar onde todos vivem sob a proteção e a segurança de um sistema coletivo eficiente. Tudo que ali acontece é conhecido e obedece a normas previamente acordadas. Os cidadãos do reino obedecem a princípios e existe uma figura que representa tudo e todos: o rei. O reino, portanto, é um lugar seguro e sagrado. A justiça é o equilíbrio de um sistema, trazendo a igualdade e o direito de todos. Ela zela pelo bem comum e permite a tranquilidade quanto às conquistas de cada pessoa. Por todos estes argumentos podemos entender que o reino e sua justiça são símbolos do Self, pois representam o que há de mais próximo ao arquétipo da totalidade na psiquê humana.
A primazia do espiritual sobre o material decorre da necessidade de se construir uma personalidade apta a usufruir do mundo em proveito de sua evolução espiritual. As experiências no mundo seriam melhor aproveitadas se a pessoa detivesse preliminarmente uma visão do significado da vida e de sua condição como ser espiritual. Na maioria das pessoas ocorre o inverso, Primeiro busca-se o mundo, para depois entender-se a si mesmo. Isso significa construir algo, isto é, um sistema explicativo a respeito de si mesmo e da vida, na consciência, que necessariamente será descontruído mais adiante.
Essa colocação nos permite uma compreensão mais ampla da vida, considerando que o aprendizado das coisas do espírito são alicerces para a apreensão do significado do existir. A percepção da espiritualidade capacita o indivíduo a entender os mecanismos da Vida e a extrair, com mais proveito, das experiências que vive os paradigmas das leis de Deus.
No versículo transcrito não há uma negação das coisas materiais, mas uma ordenação de busca. Por coisas materiais, pode-se também entender o prazer e a felicidade que podem ser alcançados na vida material. A equivocada negação desta última decorre da pressa em enquadrar a frase num sistema que tenta substituir o material pelo espiritual, com a exclusão do primeiro em favor do segundo.
A não exclusão das experiências da vida material no desenvolvimento da personalidade e na evolução espiritual do indivíduo está contido no sentido da vida.
Ainda em Mateus, no capítulo 7, versículo 12, há outra colocação de Jesus, que merece análise, quanto ao significado da vida.
Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles; porque esta é a lei, e os profetas.
O primeiro acima exposto é o da coerência lógica com o próprio desejo. Querer para o outro o que não quer para si, denuncia desigualdade. A frase trata do desejo interno de fazer as coisas. Querer algo vem do desejo e da vontade de atuar. Querer para o outro o que quer para si revela o princípio da igualdade. Esse princípio é um dos segredos da convivência humana, pois elimina a possibilidade do egoísmo e da sensação de superioridade sobre o outro.
Considerar a igualdade entre o querer para o outro e o querer para si como uma lei é estabelecer uma regra de conduta, porém é muito mais uma forma de ser do que de agir. É um ensinamento a ser vivido internamente, cujas consequências externas serão aquelas esperadas, isto é, o que se quer para si será automaticamente realizado para os outros. Antes da ação, deve vir à consciência o que se pretende, pois a transformação interna deve preceder à externa.
Pode-se pensar que o significado da vida contempla uma relação de afinidade entre os desejos no contato com o outro, isto é, a busca de um equilíbrio nas vontades em jogo. Parece-me que o conteúdo da mensagem se refere a um mecanismo automático e de equilíbrio interno. Não se trata de um conselho para a adoção de um comportamento, mas uma lembrança de que a psiquê humana é regulada por um mecanismo de equilíbrio dinâmico no desejo. Isso quer dizer que, quando se deseja ao outro algo que difere do que se deseja a si mesmo, dispara-se um mecanismo de auto-regulação psíquica. O sistema psíquico apresentará situações externas onde o equilíbrio será requisitado.
A citação de Mateus deve nos levar à consciência de que nosso desejo deve estar em consonância com o desejo do outro, a fim de que o equilíbrio ocorra. Nossa vida poderá passar por uma série de desvios quando não compatibilizamos o que desejamos para o outro com o que queremos para nós próprios.
No Evangelho de Marcos, no capitulo 8, versículo de 35 a 37, consta o seguinte:
Quem quiser, pois, salvar a sua vida, perdê-la-á; e quem perder a vida por causa de mim e do evangelho, salvá-la-á. Que aproveita o homem, ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Que daria um homem em troca de sua alma?
Neste trecho observa-se a dialética entre salvar ou perder a “vida”. Antes de uma interpretação é preciso considerar o significado de vida e o que quer dizer salvar e perder. Aparentemente vida é colocada como existência no corpo, porém, olhando mais detidamente, percebe-se que se trata de significado ou sentido de viver. Da mesma forma, salvar ou perder não parece ter o sentido de algo irreversível, mas de aproveitamento ou não da vida no corpo ou de um período determinado do existir.
Isso quer dizer que existe uma melhor forma de aproveitar as experiências da vida, que está associada a seguir os ensinamentos de Jesus e do Evangelho. Neste sentido, Jesus significa uma causa, isto é, uma ideia diretora da vida, que se identifica com a mensagem do Evangelho. Isso não quer dizer que se trata de se tornar um simples seguidor ou adorador de um mestre divino. Que causa é aquela? Essa causa, ou paradigma, quando compreendida e adequadamente vivida, proporciona um melhor aproveitamento da existência no corpo. Osso reforça a ideia de que a vida no corpo físico é uma continuidade da vida fora dele. Não são dimensões opostas, mas complementares, contínuas. Aquela causa está associada à consciência de si e à autotransformação necessária, de acordo com princípios apresentados na mensagem cristã.
A causa ou paradigma referido é uma apropriação do saber a respeito de como funciona o complexo sistema criado por Deus, que envolve os conceitos de vida, convivência e significado do existir. A citação do evangelista parece um convite à compreensão daquele sistema, a partir de um olhar diferente, perscrutando o Evangelho e extraindo dele o significado, para, em seguida, vivenciá-lo.
Um outro par de opostos pode ser identificado na citação: mundo e alma. Que significa cada um deles? Eles são colocados entre ganhar e perder, porém não parecem contraditórios ou exclusivos. Estão aparentemente em oposição, pois se pode tê-los simultaneamente. O mundo simboliza a vida relacional, o externo e as aquisições pertinentes ao viver. A alma simboliza a natureza essencial, componente da personalidade de cada um. Parece significar um conjunto de processos de origem interior que engloba: vontade, determinação e identidade pessoal. Talvez a mensagem queira dizer que é um desperdício ganhar o mundo sem acréscimo de algo à sua essência espiritual.
Este trecho do Evangelho nos convida à inserção, em nosso mito pessoal, de um novo olhar sobre a vida e seu significado, colocando a espiritualidade e a amorosidade na vida cotidiana.
Adiante, no evangelho de Lucas, capitulo 11, versículos 9 e 10, temos a seguinte citação:
Por isso vos digo: pedi, e dar-se-vos-á; buscas, e achareis; batei, e abrir-se-vos-á. Pois todo o que pede recebe; o que busca, encontra; e a quem bate abrir-se-lhe-á.
Esta frase também pode ser encontrada no evangelho de Mateus, confirmando que, por duas fontes distintas, as palavras foram realmente proferidas por Jesus. Talvez estas palavras seja aquelas que mais enfatizam o poder da mente humana e a presença divina na intimidade do espírito. Ocultamente, esta frase encerra a força do desejo e a capacidade do espírito em construir seu próprio destino. Pode-se dizer, por extensão, que o universo funciona e se move pelo desejo íntimo dos seres que o povoam.
Nossas atitudes, ideias, sentimentos, bem como os desejos conscientes, recebem contribuições de processos inconscientes que acabam por determinar o produto de nossas ações. A vida inconsciente que fervilha dentro do ser humano é muito maior e mais intensa do que a consciente.
Pedidos íntimos da infância, antigas fantasias não resolvidas desejos abrigados desse a adolescência, imaginações tomadas como realidade, bem como toda a gama de ideais, esquecidos ou não, fazem parte daqueles processos que influenciam decisivamente o destino pessoal. Pedir o obter não significa alcançar exatamente o que se pensou, mas o que resulta do pedido que move a intimidade da psiquê.Tal resultado sofre interferências externas e internas. As internas são aquelas citadas antes e as externas são do domínio extra-humano, isto é, do Divino.
Aqueles pedidos pueris e inconsequentes, baseados no egoísmo e no orgulho, não deixam e ter algum resultado. Podem, ou não, se alcançados. O sucesso dependerá da reação contrária que virá do sistema de desenvolvimento do espírito que pede. O seu sistema evolutivo está gravado em seu inconsciente. Obter algo, mesmo material ou absurdo, poderá ensejar aprendizado maior do que sua falta.
O pedido, portanto, passará por algum crivo, que servirá como filtro, deixando escoar o que estiver em conexão com o sistema divino de desenvolvimento do espírito.
Não é difícil entender que as palavras contidas no Evangelho, ou seja, a mensagem que Jesus quis passar podem ser encontradas em várias religiões e filosofias. Não é algo que se possa dizer totalmente singular em suas partes, porém assim se manifesta em seu conjunto, pois se mostra capaz de levar o ser humano a uma instância além de si mesmo. Tal instância não implica na supressão da realização na vida material, e sim em sua inclusão.
Adotar o Cristianismo parece ter sido uma forma de conciliar o interno com o externo. O interno atravessava a transição da subserviência a um deus punitivo pelos efeitos, para outro alertador quanto a eles. Enquanto religião, o Cristianismo ainda não foi capaz de tornar possível o surgimento, ao menos coletivamente, do ser humano feliz, saudável e livre.
Parece-me que, a partir dos trechos do Evangelho acima escolhidos, pode-se extrair algumas conclusões sobre o sentido e significado da vida. É óbvio que não se trata de uma conclusão extraída da totalidade das palavras de Jesus, mesmo assim poderá ser útil à compreensão dos conceitos aqui emitidos.
Resumo dos trechos escolhidos:
1- Pensar com o coração, valorizando o papel dos sentimentos no desenvolvimento da personalidade;
2- Apropriar-se do conhecimento espiritual sem esquecer o material;
3- Igualdade, paria si e para o outro, nos direitos, como regra do sentir e do agir;
4- Apreensão do significado da vida no corpo e fora dele;
5- Responsabilidade pessoal pela construção do próprio destino.
A adoção de regras de conduta baseadas nas crenças cristãs, adulteradas no decorrer da história da humanidade, poderá ser tornar uma prisão à liberdade e ao crescimento do espírito. Tais regras podem ter sido responsáveis pelo enviesamento da vida, bem como pelo bloqueio ao crescimento espiritual do ser humano. A religião deve servir para libertar e sua busca deve ser baseada na felicidade e transcendência que proporciona.
Extraído do Livro Mito Pessoal e Destino Humano – Adenáuer Novas